quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

BRIDGE OF SPIES (2015) de Steven Spielberg




Depois de Lincoln, a possibilidade de Steven Spielberg regressar tão rapidamente a um drama de época com uma narrativa fortemente política era algo de criar água na boca de qualquer cinéfilo. Eu, pelo menos, fiquei estonteado com a qualidade de Lincoln em 2012, especialmente tendo em conta a minha relativa falta de afeição para com o estilo classicamente convencional de Steven Spielberg. Para aumentar ainda mais as espectativas, o argumento deste novo projeto tinha como autores os incomparáveis irmãos Coen. Estava então cimentada uma incontornável promessa de grandeza. A Ponte dos Espiões, infelizmente, não é tão formidável como Lincoln mas continua a ser um fascinante filme coberto pela pátina da nostalgia cinematográfica e construído por um dos autores mais gentilmente populistas do cinema americano. Quem diria que eu começaria a perceber a adoração generalizada pelo trabalho de Steven Spielberg nos anos mais tardios da sua carreira?

O filme, facilmente bipartido em dois impulsos narrativos, centra-se à volta de James B. Donovan (Tom Hanks), um comum, mas respeitado, advogado americano, a quem é pedido que defenda em tribunal o agente soviético Rudolf Abel (Mark Rylance) em plena Guerra Fria. Com uma fé desmesurada na justiça e nos ideais mais nobres da sociedade americana, Donovan monta a defesa de Abel, acreditando ser o seu dever defender o seu cliente, possibilitando-lhe um justo tratamento face ao sistema judicial americano. Como consequência das suas ações modestamente heroicas, Donovan torna-se num dos homens mais infames dos EUA nos anos 50, apelidado de traidor e com a sua família a ser tão perseguida como ele mesmo.




A primeira metade de A Ponte dos Espiões trata do julgamento de Abel e da confrontação do idealismo de Donovan face ao cinismo hipócrita e bastante fanático da sociedade americana da época, mas a segunda é bastante distinta. Depois do julgamento, Abel é considerado culpado, mas, graças a apelos de Donovan, condenado à morte, sendo que, quando um soldado americano (Austin Stowell) numa missão de espionagem é capturado pela União Soviética, as duas nações compõem um complexo esquema de troca de espiões. Donovan, um cidadão privado, torna-se no principal agente nas negociações cobertas pelo subterfúgio quase teatral das políticas da Guerra Fria, sendo enviado para Berlim, logo após ao muro ter sido erguido. Aí, no gélido mundo de uma Europa dividida, o filme torna-se num completo thriller político, onde os interesses da União Soviética, da Alemanha de Leste e dos EUA vão colidindo com a humanidade das pessoas envolvidas neste esquema, nomeadamente de Donovan.




A Ponte dos Espiões não contém as mesmas complexidades políticas e ideológicas de Lincoln mas usa a sua abordagem fortemente nostálgica como um perfeito veículo para levar as audiências a contemplar questões normalmente envolvidas na segurança conferida pela pátina do passado. O texto dos Coen é de particular relevância, conferindo uma certa acidez textual que vai sempre complicando mesmo os impulsos mais adocicados da mise-en-scène de Spielberg, cujo trabalho realmente brilha aquando da construção de tensão e suspense nas negociações internacionais em Berlim. Mas o filme não prima apenas por um sólido guião e realização inteligentemente convencional, sendo que o seu elenco é inegavelmente louvável pelo final sucesso do projeto.

Tom Hanks no papel de James B. Donovan é como que um James Stewart renascido. Há uma decência e moralidade na caracterização de Donovan que seria facilmente forçada ou cliché se outro ator estivesse a cargo da sua encarnação, mas Hanks é uma escolha perfeita. O seu trabalho de modulação tonal entre o drama, a tragédia, o thriller e a comédia é de uma precisão fantástica, assegurando que o filme nunca se perde, ou se torna pouco convincente. Em Hanks o classicismo da velha Hollywood encontra a contemporaneidade textual de algumas porções do guião, fazendo de Donovan um dos melhores protagonistas e heróis no cinema americano de 2015, sendo que o seu principal atributo é a sua surpreendente e magnifica modéstia.




O resto do elenco de A Ponte dos Espiões é bastante sólido, mas mais ninguém tem o mesmo tipo de triunfo que Hanks. Quem mais se aproxima é, certamente, Mark Rylance, um veterano dos palcos ingleses que é, de momento, o grande favorito para o Óscar de Melhor Ator Secundário. O seu trabalho é bastante delicado e gentil, nunca caindo em quaisquer histerias ou gritados dramatismos, e perfeitamente servindo de propulsionador para a maioria dos conflitos do filme. É graças ao ator que Abel se torna uma presença tão humana na narrativa do filme, tanto que o seu destino incerto se torna na perfeita nota amarga a complicar o triunfo do final.

A um nível mais técnico e formal A Ponte dos Espiões é concretizado com toda a usual eficiência do cinema de Spielberg. A montagem é de particular destaque, especialmente na segunda metade do filme, onde ajuda a criar um maravilhoso jogo de tensão prolongada. Infelizmente, nem tudo é tão eficiente como o trabalho de Michael Kahn, o editor de A Ponte dos Espiões. A fotografia de Janusz Kaminski e música de Thomas Newman são particularmente problemáticas. Kaminski é demasiado indulgente para com os seus usuais gostos por iluminação imensamente artificial que confere uma beleza bastante inapropriada e simplista a toda a construção visual de filme, onde as cenas noturnas são particularmente afetadas. A respeito da banda-sonora é incrivelmente claro que Spielberg necessita do trabalho bombástico e sentimentalista de John Williams, o seu perfeito companheiro para as suas nostálgicas viagens pelo classicismo do cinema americano.



Em conclusão, A Ponte dos Espiões é um filme que surpreende pela multiplicidade de tons que se propõe a abordar, sugerindo a comédia e o ridículo nas situações mais tensas, e sombreando o triunfo com a tragédia humana que nunca é completamente exposta. Spielberg criou assim um belo exercício de eficaz convencionalismo cinemático. Este realizador americano é um dos cineastas contemporâneos que mais se deixa cair no seu amor por valores do passado e uma nostalgia cinematográfica bastante forte mas que, ocasionalmente, concebe obras como esta, onde isso nunca é um defeito mas sim um dos seus mais fascinantes aspetos e inteligentes decisões estilísticas.


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