quinta-feira, 20 de agosto de 2015

CINDERELLA (2015) de Kenneth Branagh




“(…)C'est un peu de cette naïveté que je vous demande et, pour nous porter chance à tous, laissez-moi vous dire quatre mots magiques, véritable «sésame ouvre-toi» de l'enfance:
Il était une fois...”

- La Belle et la Bête de Jean Cocteau


 Quando podemos observar no panorama do cinema contemporâneo, uma imensidão de filmes que reinventam contos de fadas e histórias infantis clássicas e encontram algo supostamente mais negro, complexo e moderno, é, talvez, interessante pensar neste apelo à imaginação e inocência infantil feito em 1946 por Jean Cocteau à audiência do seu mais belo e simples filme, La Belle et la Bête. Mais do que reinventar uma narrativa conhecida por outra perspetiva como em Maleficent e Wicked, ou acrescentar um suposto “realismo” a uma história intemporal como em Snow White and the Huntsman, ou criar uma versão irónica de uma história de princesas e magia como Mirror Mirror, a versão de Kenneth Branagh de Cinderella parece seguir esse conselho de Cocteau ao mesmo tempo que mergulha num registo ingenuamente tradicional no seu recontar da história clássica.

 A narrativa, como a encontramos no filme, não sofreu grandes reinvenções como outras adaptações passadas (Ever After), e baseia-se maioritariamente nos usuais aspetos da história da Gata Borralheira (Lily James). Um encontro prévio com o príncipe (Richard Madden) antes do baile, e uma certa pontada de humor sardónico na figura da fada-madrinha (Helena Bonham Carter) são os principais elementos que mostram alguma originalidade por parte desta produção no campo textual. Segue-se aqui um tradicionalismo clássico, que mesmo assim, quase parece uma inovação quando comparado aos seus companheiros acima referidos. Num tempo de ironia e em que a magia ingénua dos contos-de-fada infantis parece não ter lugar, um filme que de tal modo abraça a sua infantilidade com uma revigorante sinceridade, consegue parecer mais subversivo que a suposta subversão que esses outros filme parecem querer alcançar. Ambas as abordagens podem ser acusadas de simplistas e superficiais, mas quando um tipo de abordagem se torna norma, é sempre interessante observar a alternativa, mesmo que superficial e simplista.

 O interesse aqui não existe na expectativa de uma nova perspetiva sobre material já conhecido, mas sim no conforto de ouvir uma história velha recontada com a mesma simplicidade da infância. Tudo parece trabalhar para esta conjuntura, desde a realização eficiente mas levemente banal, ao glorioso mundo visual e musical, sem esquecer o elenco e o seu aparente conforto com os arquétipos adocicados do filme.

 Branagh, oferece à audiência uma visão opulenta, quase que dando vida a uma ilustração de um livro de infância ou tornando reais as imagens de um filme de animação. O trabalho de cenografia e figurinos é particularmente impressionante, sendo que o filme é uma explosão de glória imagética da autoria de Dante Ferretti e Sally Powell, como poucas vezes os vimos fazer. Aqui, com todo o dinheiro que uma companhia como a Disney consegue disponibilizar, vemos todo o mundo do conto clássico emergir numa abundância de cor, detalhe e brilho, que parece sempre esticar os limites entre a harmonia visual e a podridão estética exagerada.

 O génio dos figurinos de Sandy Powell é de particular louvor, encontrando uma estética bastante reminiscente da animação da Disney em personagens como a madrasta (Cate Blanchett) cujos figurinos têm todos praticamente a mesma silhueta reminiscente dos anos 40, apesar das cores e materiais diversos, criando a impressão de uma figura animada com um modelo específico e algumas variações. O modo como se inspira em pormenores visuais do século XVIII e XIX também lembra o trabalho dos animadores da Cinderella de 1950. As suas criações, especialmente na cena do baile, são um exagero imenso e cor e detalhe, apesar da relativa simplicidade do vestido da protagonista, mas, apesar de tudo, parecem encontrar um certo equilíbrio nesse mesmo excesso.

 A acompanhar estes elementos visuais esmagadores temos uma fotografia bastante simplista mas sólida, cheia de cores fortes e luz solarenga e acolhedora, assim como uma bela banda-sonora de Patrick Doyle, frequente colaborador de Branagh. Talvez o único elemento técnico que me deixa grandes dúvidas seja mesmo o uso de efeitos visuais, especialmente no caso dos ratos digitais, que parecem sempre demonstrar essa bizarra mistura entre naturalismo visual cortado com um sentimento permanente de que algo está errado com o que estamos a ver. Um grupinho de aberrações peludas que vão passeando pelo filme com a sua desconfortável presença.

 No que diz respeito ao elenco, James e Madden são eficientes e sólidos, mais ideias de bondade que pessoas, ambos apresentam o charme e inocência necessárias mas pouco mais. Em papéis secundários, Derek Jacobi e Stellan Skarsgård são agradáveis presenças, evitando o melodrama ao meso tempo que incorporam papeis bastante simplistas, o monarca bondoso e o vilão pragmático. Bonham Carter é uma delícia, como uma fada-madrinha desastrada coberta de cristais brilhantes. Certamente este é um registo já um pouco esperado no que diz respeito à atriz, mas, pelo menos sob o olhar de um fã como eu, continua a funcionar como uma leve brisa de humor que corta o tom geral do filme. Mas se a fada-madrinha parece emergir de um filme mais humorístico e sardónico, a verdadeira joia no centro do filme é uma perfeita continuação do estilo do filme em si. Cate Blanchett é brilhante no papel da vilã principal do filme. Uma Joan Crawford moderna num conto de fadas, exagerada e dramaticamente elegante nos seus movimentos e dicção, a atriz nunca torna a personagem demasiado complexa. Oferece, no entanto, momentos de uma humanidade feroz que indicam alguém a viver na permanente comparação com uma falecida mulher e filha inocente, como um ser humano injustamente julgado em comparação a santas. O lado humano e doloroso que inclui na simples vilã criam algo mais perigoso e ameaçador que uma simples caricatura, sem se destacar em demasia do registo fantasioso da produção. É um dos melhores trabalhos da carreira da atriz, cuja inerente teatralidade é aqui brilhantemente aproveitada.

 O filme é uma simples delícia. Não é complexo ou ambicioso, mas é eficiente na concretização de uma história infantil e ingenuamente encantadora. A sua moral pode ser um pouco conformista e conservadora para a nossa perspetiva atual, mas admito ser um pouco seduzido por uma perspetiva classicista que pensava nunca mais vir a observar em produções deste género. Não é, nem por sombras, um grande filme, mas é uma boa sobremesa sem grande valor nutricional, cheia de prazeres visuais e uma doçura e sinceridade surpreendentes.


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